Odontologia - Do diagnóstico precoce ao acolhimento: como a Odontologia fortalece a resposta ao HIV

Odontologia - 01.12.2025

Do diagnóstico precoce ao acolhimento: como a Odontologia fortalece a resposta ao HIV

Com avanços em diagnóstico, terapias e estratégias de prevenção, Brasil dá passos importantes no enfrentamento ao HIV, mas diagnóstico tardio e estigma ainda desafiam a qualidade de vida das pessoas vivendo com o vírus

Ainda há desinformação e insegurança quanto ao atendimento a esses pacientes
Ainda há desinformação e insegurança quanto ao atendimento a esses pacientes

O Dezembro Vermelho e o Dia Mundial de Luta contra a Aids, em 1º de dezembro, reforçam um ponto central: o HIV hoje é uma condição crônica tratável, mas que ainda exige vigilância, políticas públicas consistentes e cuidado multiprofissional. Estimativas do Ministério da Saúde indicam que cerca de 1 milhão de pessoas vivem com HIV no Brasil, com alta proporção em tratamento e com carga viral suprimida, cenário que representa um avanço importante em relação às décadas iniciais da epidemia.

Ao mesmo tempo, o país registra aumento na detecção de novos casos e mantém desigualdades marcantes, especialmente entre populações em maior vulnerabilidade social. Isso torna o papel da Odontologia ainda mais relevante — tanto para a suspeita diagnóstica precoce quanto para a qualidade de vida e o enfrentamento ao estigma ao longo de toda a trajetória de cuidado.

Panorama atual do HIV no Brasil

De acordo com o Boletim Epidemiológico HIV e Aids 2024, o Brasil registrou 46.495 novos diagnósticos de HIV em 2023, um aumento de 4,5% em relação a 2022. Esse crescimento é atribuído, em grande parte, à ampliação da testagem e ao fato de mais pessoas estarem realizando o exame pela primeira vez.

No mesmo período, o país alcançou a menor taxa de mortalidade por aids da série histórica recente, com 3,9 óbitos por 100 mil habitantes e 10.338 mortes em 2023 — uma queda de cerca de 32,9% na última década, segundo análise dos dados oficiais. Ainda assim, a doença segue afetando desproporcionalmente pessoas negras e populações em maior vulnerabilidade econômica e social.

Em 2024, o Ministério da Saúde anunciou que, com base em estimativas da UNAIDS, o Brasil atingiu a meta de diagnosticar 96% das pessoas que vivem com HIV, cumprindo um dos objetivos globais 95-95-95 para eliminação da aids como problema de saúde pública. Relatório anterior já indicava que, entre as pessoas diagnosticadas, 95% estavam em tratamento antirretroviral em 2022, o que reforça o impacto positivo da política de acesso gratuito aos medicamentos no SUS.

Esse contexto de avanços, porém, convive com desafios persistentes: diagnóstico tardio, barreiras de acesso aos serviços e estigma, fatores que aumentam o risco de adoecimento e de interrupção do tratamento. É justamente nesse cenário que a atuação integrada de diferentes profissionais de saúde — incluindo o Cirurgião-Dentista — se torna fundamental.

Do medo à construção de vínculos

Nos anos 1980 e 1990, quando o HIV emergiu como uma epidemia global, a população afetada enfrentava discriminação extrema, inclusive em consultórios odontológicos. "Poucos profissionais atendiam essa população", relembra o Cirurgião-Dentista Dr. Décio Roberto Masini, do Núcleo de Odontologia do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids. "O medo e o preconceito eram os principais fatores. Isso começou a mudar com os treinamentos que capacitavam os profissionais e conscientizavam sobre a necessidade de atender esses pacientes."

Quatro décadas depois, a realidade clínica mudou de forma significativa. Os esquemas de terapia antirretroviral (TARV) tornaram-se mais simples, potentes e bem tolerados, com regimes de comprimido único ao dia e monitoramento regular, o que permitiu que pessoas vivendo com HIV tenham expectativa de vida próxima à da população geral quando o tratamento é iniciado precocemente e mantido de forma adequada.

Conforme explica o infectologista Dr. Mateus Ettori Cardoso, que atua no Grupo de Pesquisa Clínica do CRT DST/Aids – SP e no Instituto de Infectologia Emílio Ribas, "os medicamentos modernos permitem alcançar uma carga viral indetectável, o que elimina o risco de transmissão sexual do vírus — um conceito conhecido como I=0 (Indetectável = Zero Transmissão)".

O conceito de Indetectável = Intransmissível (I=0) é hoje um dos pilares da resposta global ao HIV: além de reduzir adoecimento e mortalidade, a carga viral indetectável também atua como estratégia de prevenção, diminuindo a transmissão em nível populacional.

Prevenção combinada e novas tecnologias

A ampliação e diversificação das estratégias de prevenção também foram decisivas nos últimos anos. “A Prevenção Combinada, que alia abordagens biológicas, sociais e comportamentais, inclui ferramentas como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) e a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), além de testes rápidos e autotestes. Essas estratégias, ficam mais seguras quando combinadas com o uso de preservativos”, salienta o Dr. Mateus.

No Brasil, a PrEP oral à base de tenofovir e entricitabina foi incorporada ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 2017 e, desde então, vem sendo gradualmente ampliada para diferentes públicos, com atualização recente do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) de PrEP oral, que detalha indicações, esquemas de uso e acompanhamento laboratorial.

Uma novidade importante é a PrEP de ação prolongada com cabotegravir injetável, aprovada pela Anvisa em 2023. O medicamento, aplicado a cada dois meses, já está disponível no mercado privado brasileiro e é visto como alternativa estratégica para pessoas que têm dificuldade de manter o uso diário de comprimidos.

Este ano, 2025, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) passou a analisar a possibilidade de inclusão do cabotegravir injetável na rede pública, ainda sem data definida para eventual oferta pelo SUS.

Na cidade de São Paulo, uma portaria municipal de 2020 incluiu Cirurgiões-Dentistas e farmacêuticos entre os profissionais habilitados a prescrever antirretrovirais para PrEP e PEP, desde que capacitados e vinculados a serviços de saúde que sigam os PCDT do Ministério da Saúde. A medida reforça o caráter multiprofissional da resposta ao HIV e ilustra como a Odontologia pode atuar não apenas no tratamento, mas também na prevenção.

Para os Cirurgiões-Dentistas, conhecer essas ferramentas — PrEP, PEP, testagem rápida, autoteste e preservativos — é essencial para orientar pacientes, realizar encaminhamentos adequados e integrar a Odontologia às redes locais de cuidado.

Manifestações bucais, diagnóstico precoce e qualidade de vida

Apesar dos avanços terapêuticos, as manifestações bucais associadas ao HIV continuam sendo um ponto de atenção, sobretudo em contextos de diagnóstico tardio, baixa adesão ou imunossupressão avançada.

Dr. Décio destaca que, no início da epidemia, "lesões como candidoses orais, leucoplasias pilosas e sarcoma de Kaposi eram muito frequentes, compondo uma tríade de sinais sugestivos de infecção pelo HIV". Ele observa que essas condições diminuíram substancialmente com o avanço do tratamento, mas alerta para o aumento de lesões relacionadas ao HPV, especialmente em pacientes imunossuprimidos.

A literatura reforça que o Cirurgião-Dentista é capaz de reconhecer precocemente um conjunto de alterações bucais — incluindo candidíase, leucoplasia pilosa, doença periodontal, lesões por HPV e ulcerações — que podem estar associadas ao HIV, contribuindo de forma decisiva para a suspeita diagnóstica e o encaminhamento oportuno aos serviços especializados. "Lesões bucais podem ser os primeiros sinais de infecção pelo HIV", aponta Dr. Mateus, destacando a importância de uma avaliação criteriosa.

Para o Dr. Décio, o impacto do cuidado odontológico vai além do aspecto clínico: "Nas populações mais vulneráveis, o tratamento odontológico pode promover a melhora da autoestima e incentivar os pacientes a aderirem corretamente ao tratamento antirretroviral."

O manejo adequado da dor, das infecções oportunistas, das alterações funcionais e das repercussões estéticas tem efeito direto na alimentação, na comunicação e na autoestima, elementos fundamentais para a adesão à TARV e para a permanência dos pacientes nos serviços de saúde.

Acolhimento, estigma e trabalho em equipe

Mesmo em um contexto de avanços importantes, o estigma continua sendo um dos maiores obstáculos à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento do HIV. O medo de julgamento ou de discriminação ainda afasta muitas pessoas dos serviços de saúde, favorecendo diagnósticos tardios e maior risco de transmissão.

Além das barreiras sociais, há também desafios relacionados à formação profissional. “É importante reforçar os conhecimentos durante a graduação em Odontologia e também promover atualizações periódicas aos profissionais já formados, no que tange ao atendimento a pacientes HIV/Aids, pois ainda há desinformação e insegurança quanto ao atendimento a esses pacientes”, lembra o Dr. Décio.

Organismos internacionais como a UNAIDS têm reiterado que enfrentar o estigma e as barreiras de direitos humanos é condição indispensável para acabar com a Aids como ameaça à saúde pública.

Nesse cenário, a postura do Cirurgião-Dentista — seja no serviço público, seja na prática privada — é decisiva. Oferecer acolhimento respeitoso, garantir sigilo, utilizar linguagem não estigmatizante e trabalhar em articulação com equipes médicas, de enfermagem e serviço social são componentes centrais de uma prática ética e humanizada.

Ao integrar ciência, prevenção combinada, atenção às manifestações bucais e combate ao estigma, a Odontologia contribui de forma concreta para que pessoas vivendo com HIV tenham uma vida mais longa, saudável e digna. No contexto do Dezembro Vermelho, essa mensagem se renova: cada consulta odontológica é, também, uma oportunidade de informação, acolhimento e proteção de direitos.

Por Swellyn França