Odontologia - 06.09.2025
A equipe de saúde bucal no enfrentamento das violências: orientações práticas para o Cirurgião-Dentista
Publicada pelo Ministério da Saúde, cartilha orienta Cirurgiões-Dentistas a identificar, acolher e encaminhar situações de violência, reforçando o papel da saúde bucal na proteção das vítimas e na promoção da dignidade humana

Nos consultórios odontológicos, sinais de violência — física ou psicológica — muitas vezes estão à vista, mas passam despercebidos. Reconhecer essas situações e agir de forma adequada é uma responsabilidade ética e legal do Cirurgião-Dentista. Para apoiar esse trabalho, o Ministério da Saúde lançou a cartilha “A Equipe de Saúde Bucal e o Enfrentamento das Violências”, um guia de orientação prática sobre identificação, acolhimento, notificação e encaminhamento de casos.
A ideia para o material surgiu após uma apresentação da Dra. Áquila Dantas, do Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) de Natal, em um Encontro de Coordenadores Municipais de Saúde Bucal. A partir dessa provocação, formou-se um grupo de trabalho envolvendo pesquisadores e profissionais de diversas regiões do país, entre eles a professora Dra. Luciane Miranda Guerra, professora da FOP/Unicamp, que conduziu o processo que foi desafiador e exigiu muita dedicação.
“Foi um trabalho em equipe, feito em parceria com a Coordenação Geral de Saúde Bucal do MS, discutido por todos os autores, já que cada um de nós tem expertise maior numa área (crianças, idosos, deficientes etc.) e destinado também a equipes de saúde bucal. Por isso, foi gratificante. Mas foi também complexo, pois levamos um ano entre discussão, elaboração, correções, editoração etc. Tivemos o cuidado de elaborar um material muito coerente com a prática diária das equipes, potente, com ampla fundamentação teórica, mas de uso prático, para o dia a dia das equipes nos seus territórios.”
Conteúdo estruturado para a prática
Responsável técnica pela cartilha, a Cirurgiã-Dentista, ex-Coordenadora-Geral de Saúde Bucal do MS, Dra. Doralice Severo da Cruz explica que o documento foi pensado para refletir a integralidade do cuidado e oferecer instrumentos operacionais claros para os profissionais. O texto aborda desde conceitos gerais e marcadores sociais — como gênero, idade, raça, deficiência, orientação sexual e classe social — até os diferentes tipos de violência, grupos vulneráveis, orientações para notificação e modelos de documentos de apoio. “O material também dialoga com o marco legal, trazendo ECA, Lei Maria da Penha, Estatuto do Idoso, Estatuto da PcD, Estatuto da Igualdade Racial e tratados internacionais, reforçando o amparo legal do profissional. Na época, a Lei nº 15.116/2025 ainda não havia sido sancionada”, comenta.
A linguagem foi propositalmente simples e direta, adequada tanto para profissionais experientes quanto para aqueles em formação. Ilustrações, fluxos de notificação, telefones úteis e exemplos práticos tornam o conteúdo atrativo e facilitam sua aplicação nos serviços de saúde.
“O fio condutor de toda a cartilha é a mensagem de que a Odontologia tem responsabilidade ética, técnica e social no enfrentamento das violências — no SUS e na prática privada — sendo parte da rede que protege direitos, rompe ciclos de violência e promove dignidade humana”, reforça a Dra. Doralice.
Sinais de alerta no consultório
A Dra. Luciane explica que é preciso ampliar o olhar clínico e considerar sinais físicos e comportamentais que podem indicar violência. Em crianças, por exemplo, é necessário atenção a comportamentos como receio de falar sem o consentimento dos pais, uso de roupas muito pesadas em dias quentes, hematomas e eritema circunscrito no palato — que pode indicar violência sexual. Já em mulheres, hematomas em lábios e face, uso de óculos escuros em ambientes fechados e fraturas ou traumas buco-dentais sem causa aparente merecem investigação. “Mas é necessário ressaltar que somente o acolhimento bem feito e o vínculo entre paciente e profissional poderão dar às vítimas a segurança necessária para falarem e assim confirmarem ou não as suspeitas clínicas”, destaca.
Do acolhimento à notificação
A Dra. Doralice recomenda que o profissional siga alguns passos essenciais: reconhecer a violência como um agravo de saúde pública, criar um ambiente de escuta segura e humanizada, dominar o marco legal e os fluxos de notificação — lembrando que a notificação é compulsória e não equivale a denúncia policial — e acionar a rede de apoio multiprofissional para garantir o encaminhamento adequado.
Ela ressalta que preencher corretamente a ficha do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação - base de dados do Ministério da Saúde para monitorar doenças e situações de interesse em saúde pública) e respeitar os prazos — especialmente nos casos de violência sexual e tentativa de suicídio, que devem ser notificados em até 24 horas — é fundamental para não comprometer o fluxo de proteção.
“A responsabilidade é institucional, não individual, e o profissional está amparado pelas normativas do Sistema Único de Saúde (SUS)”, lembra.
Outro ponto destacado pela Dra Doralice é a necessidade de capacitação contínua. Simulações em equipe, atualização sobre protocolos e estudo de casos reais ajudam a aumentar a confiança dos Cirurgiões-Dentistas na abordagem das vítimas.
Ferramenta de impacto social
Para a Dra Luciane, a cartilha é um instrumento transformador. “A cada dia, 4 mulheres morrem no Brasil pelo fato de serem mulheres. E o feminicídio é a ‘ponta do iceberg’. Tudo começa com as violências que marcam física, emocional, psicológica ou patrimonialmente as vítimas e o Cirurgião-Dentista é um dos profissionais mais acessados por elas. Precisa, portanto, estar atento e preparado para esse enfrentamento e para não revitimizar a paciente.”
Ela lembra que o material é gratuito e on-line, reunindo de forma acessível as lesões mais comuns em cada grupo vulnerável, condutas preconizadas, fluxos de encaminhamento e orientações sobre notificação compulsória.
Dra Doralice complementa que o cenário atual traz ainda mais relevância para o tema, especialmente com a Lei nº 15.116/2025, que instituiu o Programa de Reconstrução Dentária para Mulheres Vítimas de Violência Doméstica no SUS.
“Essa lei garante tratamento odontológico prioritário e humanizado, incluindo reconstrução dentária, próteses, tratamentos estéticos e ortodônticos. Notificar não é denunciar, é proteger — e, agora, também reabilitar. A notificação cria os fluxos para suporte multidisciplinar. O programa devolve o sorriso — e com ele, a confiança e a possibilidade de reintegração social”, afirma.
Diante de suspeita de violência, lembre-se:
Observe, registre, acolha, notifique, encaminhe e proteja-se.
Cada passo é fundamental para quebrar o ciclo de violência e garantir o cuidado integral ao paciente.
Acesse a cartilha aqui!
Por Swellyn França