Pacientes em foco - 07.05.2024
O impacto psicossocial das Reabilitações Orais
Compreender o impacto psicossocial das reabilitações orais é essencial para uma prática odontológica mais humanizada e eficaz. Esse processo não se limita apenas à restauração da função bucal, abrangendo uma série de tratamentos, como extrações, implantes, próteses, periodontia e endodontia. Ou seja, é um procedimento multidisciplinar fundamental para a saúde e o bem-estar do paciente.
De acordo com a doutora em Odontologia Restauradora área de Prótese Dentária, Karina Andrea Novaes Olivieri, ao realizar a reabilitação de um paciente que está parcial ou totalmente desdentado, lida-se com alguém funcionalmente comprometido. “A perda de dentes afeta sua capacidade de mastigação e, quando envolve os dentes anteriores, também pode ter um impacto estético significativo. Esse comprometimento interfere, ainda, no convívio social e na autoestima. A falta de dentes pode até mesmo prejudicar sua capacidade de trabalho e impactar a fala”, aponta.
De fato, ao devolver a capacidade da mastigação ou deixar um sorriso mais bonito, o Cirurgião-Dentista colabora com o aumento da autoestima, da satisfação pessoal e do equilíbrio emocional do paciente. “O tratamento bem-executado pode renovar o prazer em comer, ajudar nos relacionamentos afetivos e sociais e até mesmo gerar mudanças comportamentais significativas”, ressalta o Dr. Fábio Audi Gonçalves, Cirurgião-Dentista e psicanalista, com mais de 30 anos de experiência.
Portanto, segundo ele, compreender os fenômenos psíquicos que envolvem a Odontologia, além da estrutura corporal, considerando a mente também, melhora o relacionamento entre Cirurgião-Dentista e paciente e pode ser a chave de um relacionamento de sucesso.
Há vários fatores psicológicos e sociais aos quais o profissional deve estar atento, como fobia e ansiedade. A fobia é quase irracional e nem sempre justificável. É um medo inexplicável que assume dimensões maiores que a realidade. Já a ansiedade é um sofrimento antecipado, mais consciente, uma aflição prevista e esperada.
Na mesma linha há os traumas, que são vivências prévias que agem negativamente nas emoções, causando tormentos e angústias com base em acontecimentos passados. É possível ressaltar, ainda, a imagem mítica do Cirurgião-Dentista como um ser torturador, que tem procedências sociais de uma época em que os métodos eram realmente penosos ou ainda das clássicas ameaças na infância, nas quais a punição pelo desleixo com os dentes era uma visita ao consultório.
“Por este motivo, o Cirurgião-Dentista deve exercitar uma visão integral de cada indivíduo, considerando todas as particularidades técnicas e não técnicas, objetivando a qualidade de vida do paciente e o sucesso do tratamento proposto”, afirma o Dr. Francis Henrique do Nascimento Tsurumaki, Supervisor de Saúde Bucal do CEJAM – Centro de Estudos e Pesquisas Dr. João Amorim, Cirurgião-Dentista especializado em Saúde da Família e Implantodontia.
Estratégias que os Cirurgiões-Dentistas podem adotar
Segundo o Dr. Fabio, o tratamento envolve gerar confiança no paciente, já que se mexe em uma cavidade íntima. Ele considera que a humanização é a base de tudo e precisa estar presente logo no primeiro contato. “Os Cirurgiões-Dentistas devem entender a importância da compreensão psíquica de fobias, traumas e até de um eventual meio de autossabotagem que pode estar envolvido quando o paciente entra no consultório”.
Algumas estratégias funcionam para todos estes fatores psicológicos e sociais. São posturas que qualquer profissional pode adotar, não é necessário ser psicólogo ou psiquiatra. O primeiro ponto é se inteirar do histórico do paciente, conhecendo melhor suas experiências para analisar características importantes em seu comportamento e que deverão ser consideradas no relacionamento. “Dedicar tempo na realização de uma entrevista inicial detalhada ajudará a entender as necessidades, assim como seus sentimentos, preocupações e expectativas com relação ao tratamento. É preciso envolver o paciente ativamente no processo de tomada de decisões, discutindo as opções de tratamento de forma clara, fazendo-o entender todos os pontos necessários para um prognóstico favorável, considerando suas referências e preferências. A corresponsabilização deve ser evidenciada, sobre os cuidados, benefícios e riscos do tratamento, o que ajudará na compreensão e redução da ansiedade”, comenta Dr. Francis.
Da mesma forma, continua o Dr. Fábio, deve-se observar aspectos relevantes da conduta do paciente, levando em conta seu modo ser e agir, jamais minimizando suas emoções. “Ter empatia é fundamental, pois ao se colocar no lugar do outro, amplia-se a visão para o todo, permitindo trabalhar de maneira individualizada e acolhedora. Finalmente, quando for necessário, deixar que o paciente assuma o controle, respeitando seus tempos e limites”, expõe.
A criação de um ambiente de confiança influencia de forma positiva no tratamento. “Estratégias simples, como oferecer um local relaxante, com músicas suaves ou distrações visuais, podem auxiliar na redução da ansiedade”, acrescenta Dr. Francis. Segundo ele, após o tratamento, é necessário o acompanhamento do paciente para garantir a adaptação às mudanças, oferecendo suporte emocional, se necessário.
É preciso deixar a Odontologia mais humana, mais verdadeira, além da boca. “Os conhecimentos específicos do funcionamento do cérebro e de sua ação nas emoções são tecnologias potentes e cada vez mais acessíveis. Nunca foi tão fácil encontrar artigos, vídeos e cursos sobre esses assuntos. Pesquisar e estudar esses temas será um diferencial”, diz o Dr. Fábio.
Por sua vez, Dr. Luciano Dib, Cirurgião-Dentista especialista em Estomatologia e Cirurgia Bucomaxilofacial, Mestre em Patologia Bucal e Doutor em Clínica Integrada pela FOUSP, diz que os Cirurgiões-Dentistas devem ter consciência da responsabilidade holística que têm. “São profissionais cuidando de seres humanos e suas ações não têm apenas impacto técnico, por isso, o paciente precisa ser considerado com grande respeito e como alguém que merece uma atenção ampla. Como fazer isso? Trazendo o tema à tona e enfatizando a responsabilidade dessas ações”, salienta.
Para o Dr. Luciano, a chave para o sucesso reside em entender as expectativas dos pacientes, suas necessidades técnicas, clínicas, emocionais e psicológicas, evitando exageros ou distorções, também reconhecendo as oportunidades de melhoria na qualidade de vida que a reabilitação pode proporcionar. O profissional deve adotar uma abordagem holística, equilibrando aspectos técnicos e humanos, e adaptar o plano de tratamento de acordo com os recursos disponíveis, desejos pessoais e limitações econômicas do paciente.
Para ele, responsabilidade e ética são pilares essenciais da prática profissional. Mais do que apenas obter consentimento informado, é crucial ter um conhecimento completo e transparente do paciente. “A ética profissional surge do estabelecimento de um relacionamento baseado na confiança, no qual o profissional cumpre o combinado após uma discussão detalhada, levando em consideração todas as circunstâncias e necessidades do paciente”, explica.
Exemplos de superação
No desenvolvimento de sua carreira, Dr. Fábio foi percebendo a importância da visão psicanalítica na esfera odontológica e moldou suas consultas para que esse conhecimento surtisse efeitos positivos. Ele teve sucesso em casos desafiadores, como o de um engenheiro que perdeu todos os dentes e enfrentou dificuldades com uma prótese removível. O desconforto e o medo de incidentes afetaram seu trabalho e sua vida social, mas o receio de um tratamento desgastante era uma barreira maior. Só através do diálogo alcançaram uma reabilitação bem-sucedida.
Em outro caso, ofereceu apoio emocional total a um paciente que encaminhou para uma cirurgia de gengiva com outro profissional. Houve ainda um episódio com um empresário que não tinha cuidado na manutenção dos tratamentos, o que levou a um desgaste tão grande que o Dr. Fabio acabou optando por não mais atendê-lo. “Entretanto, o que poderia ter sido um desfecho desastroso, deu certo no final. Ele retornou após um tempo, desta vez com atitudes bem mais colaborativas. Acredito que fruto de minha abordagem franca, focada nas individualidades”.
Já o Dr. Luciano lida com pacientes com câncer que sofrem deformidades pelo tratamento, perdendo porções ósseas, dos maxilares e da face, além dos dentes. Ele é presidente do Instituto Mais Identidade, organização social que se dedica à reabilitação bucomaxilofacial. “Muitas pessoas que viviam escondidas tiveram, a partir da recuperação da arcada dentária, condições de sorrir, falar e mastigar, sem ter de esconder”, conta.
Um exemplo marcante é o de uma arquiteta que, após passar por tratamento de um tumor na mandíbula e usar prótese removível, foi reabilitada com enxertos e implantes. Isso não apenas melhorou sua vida pessoal, permitindo-lhe sorrir e falar sem constrangimentos, mas também fortaleceu sua vida conjugal. Seu marido, que não sabia do problema dentário, ao ser incluído no processo de tratamento, se sentiu valorizado e apoiou a esposa, resultando em uma união ainda mais sólida e uma qualidade de vida superior para toda a família, incluindo os filhos.
Formação profissional, moral e ética
Na teoria, o Cirurgião-Dentista deveria ter uma formação específica em ética e moral, embora na prática essa preocupação esteja diminuindo, considera o Dr. Luciano. A redução da carga horária e da ênfase em aspectos humanísticos na formação odontológica é evidente ao longo das últimas décadas. Segundo ele, o foco no tecnicismo e no lucro imediato muitas vezes prevalece sobre uma abordagem holística da saúde do paciente. “Infelizmente, alguns profissionais aproveitam-se das fragilidades dos pacientes para vender tratamentos desnecessários que não beneficiam a saúde a longo prazo. Portanto, é fundamental que recebam uma formação mais ampla, que priorize os valores humanos e os prepare para assumir seu papel essencial no cuidado da saúde das pessoas”, adiciona.
Por outro lado, Dr. Francis diz que o modelo segregado por especialidades técnicas vem dividindo espaço com disciplinas de clínica integrada, gestão e saúde pública, que contribuem no desenvolvimento do profissional com um olhar integral para o indivíduo e suas relações com o meio onde vivem. “Cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva são uma boa oportunidade para o desenvolvimento desta competência”, opina.
Por fim, Dr. Francis diz que a Odontologia tem um viés intimamente relacionado aos aspectos emocionais, e por este motivo o profissional Cirurgião-Dentista deve possuir uma visão humanizada, fortalecendo os laços paciente x profissional, adaptando o plano terapêutico à realidade do paciente, exercendo empatia e comunicação efetiva, dedicação ao tempo para a escuta qualificada, obtendo assim melhor prognóstico nos tratamentos, respeitando as diferenças e o compromisso com os valores éticos e sociais.