Pacientes em foco - 19.11.2024
Flúor faz mal à saúde? Entenda a polêmica sobre o composto usado para prevenir cárie
Especialistas afirmam que o uso da substância adicionada à água e nas pastas de dente é seguro
O flúor, adicionado à água potável, à maioria das pastas de dente e utilizado em consultório odontológico, tem sido uma estratégia para a prevenção da cárie. No entanto, a ferramenta sempre foi alvo de polêmica e isso se intensificou nos últimos anos, com a publicação de estudos que associam o flúor a riscos para a saúde.
Especialistas afirmam que o uso do flúor (ou fluoreto, forma qual o elemento é utilizado na água, nas pastas de dente e em consultórios odontológicos) em quantidades consideradas “ótimas” para a prevenção ou tratamento da cárie, não causa danos à saúde.
— A única evidência que existe do efeito do fluoreto seja da água, do dentifrício ou de outros meios, é a fluorose dentária, que são manchas no esmalte do dente — afirma o cirurgião-dentista Jaime Aparecido Cury, professor emérito da Unicamp e um dos principais especialistas no assunto no mundo. — Mas essas manchas só ocorrem quando você tem excesso de fluoreto — completa.
O fluoreto é um mineral naturalmente presente em muitos alimentos e que está disponível como suplemento dietético. Ele também é a forma iônica do elemento flúor e inibe ou reverte o início e a progressão da cárie dentária e estimula a formação de novo osso, segundo informações dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH).
COMO O FLÚOR PREVINE A CÁRIE
A cárie é uma doença crônica, que afeta os dentes e pode se manifestar em qualquer fase da vida. Seu surgimento está diretamente associado ao consumo de produtos açucarados.
— Cárie não está associada à falta de nutrientes ou aos hormônios nem menopausa. A cárie é simplesmente decorrente da alta frequência de consumo de produtos açucarados e está intimamente relacionada com o nível social e educacional da população, por isso não é possível erradicá-la. Mas é possível controlá-la — pontua o odontopediatra José Carlos Pettorossi Imparato, membro da Câmara Técnica do Conselho Regional de Odontologia de São Paulo (CROSP) e professor da Faculdade de Odontologia da USP.
Inicialmente, a cárie provoca apenas manchas esbranquiçadas e opacas nos dentes. Mas conforme o esmalte dentário é deteriorado, surgem manchas escuras e, sem tratamento, o quadro evolui para dor, inflamação da gengiva, formação de abscessos, perda do dente e acometimento de ossos e outros dentes da região.
— A cárie não tratada gera um problema de saúde, pois fica uma infecção dentro do organismo — ressalta Imparato.
Como evitar completamente o consumo de açúcar é uma tarefa praticamente impossível para a maioria das pessoas, a segunda opção para prevenir a cárie é utilizar o flúor em baixas concentrações na pasta de dente e na água.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o flúor previne a cárie por meio de diversas ações diferentes. Quando presente na saliva e nos dentes constantemente e em baixas concentrações, por meio do uso de pasta de dente com o composto, o flúor atrasa a desmineralização e acelera a remineralização das lesões do esmalte dentário.
Além disso, o flúor interfere na glicólise, processo pelo qual as bactérias cariogênicas metabolizam açúcares para produzir ácido e tem ação bactericida.
— As bactérias presentes na boca transformam o açúcar em ácido que dissolve um pouco do dente. Quando a pessoa escova o dento com uma pasta fluoretada, aquele fluoreto ajuda a repor essas pequenas quantidades de minerais que o dente perdeu. Inclusive, em 2021, a OMS incluiu a pasta fluoretada na lista de medicamentos essenciais da ONU — diz Cury.
Por fim, quando o flúor é ingerido durante o período de desenvolvimento dentário, torna o esmalte mais resistente a ataques ácidos posteriores e subsequente desenvolvimento de cárie. Esse último mecanismo de ação é o que levou a muitos países – incluindo o Brasil – a adotarem a fluoretação da água como forma de prevenir a cárie. Pesquisas sugerem que beber água com adição de flúor pode reduzir as cáries em até 25%.
Embora o uso da pasta de dente seja uma eficaz e importante medida de prevenção individual, a fluoretação da água entra como uma forma de prevenção comunitária, que, segundo a OMS, tem uma “boa relação custo-benefício para a prevenção da cárie dentária”.
De acordo com a entidade, a concentração ideal de flúor na água potável para prevenir a cárie sem trazer riscos à saúde varia entre 0,5 e 1,0 mg/L. No Brasil, a faixa estabelecida é de 0,6 a 0,8 mg/L, sendo 0,7 considerada a concentração “ótima” para prevenção da cárie.
— A fluoretação da água é uma iniciativa de prevenção da cárie eficaz e segura. Ela foi considerada uma das 10 principais intervenções de saúde pública no mundo no século 20 e é defendida pela OMS e pelo Ministério da Saúde. Inclusive, existem linhas de financiamento para os municípios para fluoretação da água de abastecimento — pontua o especialista em odontopediatria, saúde pública e odontologia hospitalar Evaristo Volpato, tesoureiro do Conselho Federal de Odontologia (CFO).
RISCOS ASSOCIADOS AO FLÚOR
Por outro lado, como qualquer substância, flúor em excesso pode fazer mal. Segundo os especialistas, mesmo combinando as doses administradas na água e nos cremes dentais, o volume de flúor no organismo não chega a ser prejudicial.
O principal risco associado ao excesso de flúor, é a fluorose dentária, que são manchas no esmalte do dente decorrentes da ingestão de flúor em excesso.
Na maioria dos casos, a condição é apenas estética. Mas em sua forma mais grave, a mineralização reduzida pode resultar em dentes esburacados. Estes casos são mais comuns através do consumo excessivo de águas subterrâneas naturalmente ricas em flúor.
Dependendo da ingestão total, a água que é fluoretada para prevenção da cárie até pode causar fluorose, mas em um nível que só é detectável por exame especializado. Um ponto importante é que a fluorose ocorre devido à ingestão no longo prazo de altos níveis de flúor durante o processo de formação dos dentes.
— Tem que ingerir (flúor) diariamente até os 8 anos de idade, que é quando o dente está em formação, para o fluoreto interferir sistemicamente na mineralização do dente — explica Cury.
— A fluorose não acontece no dente que já está na boca. Se a criança já tem os dentes permanentes, não corre risco nenhum de ter fluorose — completa Volpato.
Outra possibilidade é se uma criança ingerir constantemente pasta com flúor. Isso era algo mais comuns há alguns décadas, com casos de crianças que literalmente comiam aquelas pastas de dente saborizadas. No entanto, essa ainda é uma preocupação de muitos pais e, segundo Volpato, foi isso que motivou o surgimento de pastas de dente sem flúor ou com baixa concentração de flúor (menos de 1000 PPM, para fator de comparação, as pastas com flúor contém entre 1000 e 1400 PPM). Esses produtos seriam destinados para crianças pequenas, cujos dentes ainda estão em formação. No entanto, eles não protegem contra a cárie.
— A evidência científica mostra que as pastas de dente com concentração menor do que 1000 PPM de flúor não previne cárie — afirma o tesoureiro do CFO.
E quanto à aplicação profissional de flúor, feita em consultório odontológico? Provavelmente, pais de crianças pequenas ou adultos que foram crianças na década de 1990 e passavam flúor toda vez que iam ao dentista perceberam que hoje não é mais assim.
Segundo Volpato, a mudança na abordagem do dentista foi motivada pelo melhor entendimento do processo da cárie e da ação do flúor.
— Hoje temos acesso a outras fontes de flúor, como a pasta de dente e a água de abastecimento público e sabemos que a principal ação do flúor é quando você existe desmineralização. Se o paciente não tiver sinal de desmineralização, não tem por que fazer aplicação do flúor. Por outro lado, se o paciente tiver lesões de cárie em um estágio precoce, o tratamento é a remineralização com aplicações semanais de flúor — explica.
Outro efeito adverso da ingestão crônica de altas doses flúor que está bem documentado é a fluorose esquelética, na qual o osso é radiologicamente denso, mas frágil. No passado, o excesso de flúor já foi associado a Alzheimer, autismo, TDAH e problemas na tireoide, embora nada disso tenha sido comprovado.
Estudos publicados nos últimos anos associaram a ingestão de flúor – em especial por meio da água fluoretada – a outros efeitos negativos na saúde, como problemas de desenvolvimento infantil e comportamento.
Um deles, publicado em 2019 na revista científica Jama Pediatrics, associou a ingestão de água fluoretada à redução do QI dos bebês. Outro trabalho, publicado este ano na revista JAMA Network Open sugeriu que níveis mais elevados de flúor consumidos durante o terceiro trimestre de gravidez estavam associados a um maior risco de problemas comportamentais nas crianças aos 3 anos de idade. No entanto, em ambos, não houve consenso na classe científica a respeitos dos resultados.
De acordo com a OMS, pode haver intoxicação aguda por flúor mediante exposição a “altas concentrações dos compostos de flúor mais solúveis”. Neste caso, os sintomas incluem dor abdominal, saliva excessiva, náusea e vômito. Em casos graves, pode ocorrer convulsões, espasmos musculares, e até morte por paralisia respiratória.
Também existem estudos que associaram a ingestão de água fluoretada a um aumento do risco de osteosarcoma, um tipo de câncer. Entretanto, a OMS afirma que “não há evidências em publicações recentes e revisadas por pares de que os níveis de flúor na água potável destinados ao controle da cárie dentária estejam associados ao aumento do risco de câncer ósseo em humanos”.
Ainda segundo a entidade, nenhuma associação foi encontrada entre as taxas de síndrome de Down ou malformação congênita e o consumo de água potável fluoretada. Mesmo assim, para quem quer reduzir o consumo de flúor, é possível limitar a quantidade de chá preto ou verde ingeridos, pois também há flúor nessas bebidas e utilizar filtros de água que removem algum flúor. Quanto à pasta de dente, basta não engoli-la, mas não há razão para não a utilizar.
Fonte: O Globo Por Giulia Vidale