Odontologia - 30.05.2025

O Cirurgião-Dentista na vanguarda da Saúde Pública: desmascarando a indústria do tabaco e o papel essencial das Políticas Públicas

Executiva em saúde e coordenadora estadual do Programa Nacional de Controle do Tabagismo no Estado de São Paulo, Dra. Sandra Silva Marques, defende que o Cirurgião-Dentista deve ser reconhecido como agente essencial nas políticas públicas de saúde

Diante do complexo e insidioso cenário imposto pelo consumo de produtos de tabaco e nicotina, que se renovam constantemente para capturar novas gerações, o Cirurgião-Dentista emerge não apenas como um profissional de saúde, mas como um protagonista essencial na abordagem e combate a este vício. Sua atuação transcende o tratamento de manifestações bucais, posicionando-o na linha de frente da promoção da saúde e da prevenção, muitas 
vezes sendo o primeiro a desmascarar os efeitos deletérios e as táticas da indústria do tabaco, revelando seus impactos precoces e sistêmicos, e contribuindo ativamente para a efetividade das políticas públicas de controle do tabaco.
 
A integralidade do cuidado prestado pelo Cirurgião-Dentista é um pilar fundamental nesta luta. Ao examinar a cavidade bucal, este profissional está apto a identificar precocemente uma vasta gama de sinais e sintomas diretamente relacionados ao uso de tabaco e nicotina. Isso inclui alterações salivares, como a xerostomia (boca seca) e a alteração do pH salivar, que 
contribuem para um maior risco de cáries; lesões de mucosa, como leucoplasias (manchas brancas que não raspam), eritroplasias (manchas vermelhas), estomatite nicotínica e melanose do fumante, muitas das quais possuem potencial de malignização; doenças periodontais, que se manifestam com progressão acelerada e menor resposta ao tratamento; e maior incidência de lesões de cárie, especialmente em áreas de difícil higienização. Além disso, sinais como 
halitose persistente e manchamento dental intrínsecos são indicadores comuns.
 
Esta observação minuciosa permite que a saúde bucal seja compreendida como um espelho da saúde sistêmica, conectando os danos orais a riscos cardiovasculares (como aterosclerose e infarto do miocárdio), pulmonares (como Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica - DPOC e enfisema) e oncológicos (câncer de boca, faringe, laringe, esôfago, pulmão, pâncreas e bexiga), oferecendo uma perspectiva ampliada e crucial ao paciente. A detecção de biomarcadores em saliva ou na mucosa oral também se apresenta como um campo promissor para a identificação de riscos. 

O impacto do tabagismo na saúde global é devastador. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o tabaco mata mais de 8 milhões de pessoas por ano no mundo, incluindo cerca de 1,3 milhão de não-fumantes expostos ao fumo passivo. No Brasil, estimativas apontam que mais de 160 mil pessoas morrem anualmente devido a doenças relacionadas ao tabaco. Além disso, o custo econômico global do tabagismo é substancial, com despesas 
anuais estimadas em mais de 1,4 trilhão de dólares em gastos com saúde e perda de produtividade. Esses números alarmantes sublinham a urgência de todas as frentes de combate.

O acolhimento desempenha um papel crucial na abordagem do paciente tabagista, sendo um ato de profunda desmistificação dos estigmas. O consultório odontológico, muitas vezes um ambiente de confiança e regularidade na vida do indivíduo, torna-se um espaço propício para o diálogo aberto e não-julgador. Por meio de uma escuta ativa e empática, frequentemente embasada em princípios da Entrevista Motivacional, o Cirurgião-Dentista pode investigar o histórico de uso, a motivação para a cessação e as barreiras percebidas. Esta abordagem 
permite identificar o estágio de prontidão para a mudança do paciente, conforme o Stages of Change Model (pré-contemplação, contemplação, preparação, ação, manutenção), e aplicar brief interventions como o modelo "5 A's" (Ask, Advise, Assess, Assist, Arrange), construindo um vínculo que potencializa a adesão ao tratamento e a referência para outras especialidades, quando necessário. 

Adicionalmente, e de forma distintiva, o Cirurgião-Dentista, munido de conhecimento técnico e respaldo legal em diversas jurisdições, está capacitado a prescrever medicamentos coadjuvantes no tratamento do tabagismo. Esta capacidade farmacoterapêutica, aliada a um plano de tratamento individualizado que considera as contraindicações e os possíveis efeitos colaterais, confere ao profissional a prerrogativa de oferecer um suporte mais completo e baseado em evidências, aliviando os desafios impostos pela dependência química que a 
indústria tanto se esforça para criar, e aumentando significativamente as chances de sucesso do paciente.

A atuação do Cirurgião-Dentista é intrinsecamente ligada ao fortalecimento das políticas públicas de controle do tabaco. Ao educar a população sobre os riscos e as táticas da indústria (como os sabores e o marketing digital direcionado a jovens), o dentista desmascara a narrativa de "segurança" ou "redução de danos" de produtos como os cigarros eletrônicos – cujo uso entre adolescentes, por exemplo, tem crescido exponencialmente em muitos países, revertendo anos de progresso na diminuição do tabagismo entre jovens – apoiando a 
necessidade de regulamentações mais rigorosas. Seu advocacy profissional, através de associações e conselhos, é fundamental para a defesa de legislações específicas ao controle do tabaco. O Brasil, signatário da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) da OMS, é um exemplo de sucesso na implementação de políticas públicas eficazes, como a 
proibição da propaganda de tabaco, o aumento de impostos sobre cigarros, a criação de ambientes 100% livres de fumo, as advertências sanitárias gráficas em embalagens e, futuramente a proibição de aditivos de sabor em produtos de tabaco. Essas medidas têm demonstrado um impacto significativo na redução da prevalência do tabagismo. Além disso, ao orientar pais e responsáveis sobre a facilidade de acesso a esses produtos e incentivar a denúncia de vendas ilegais, o Cirurgião-Dentista contribui diretamente para a efetividade da 
fiscalização e para a redução da acessibilidade, pilares essenciais de qualquer política pública robusta. 

Como o Cirurgião-Dentista Pode Ajudar a Implementar Políticas Públicas Eficazes: 
A participação ativa do Cirurgião-Dentista é fundamental para a concretização das políticas de controle do tabaco em diferentes níveis: 

1. Na Clínica Diária (Nível Individual):

• Informação sobre Leis: Orientar pacientes sobre as leis antifumo (ex: ambientes 100% livres de fumo, proibição de venda a menores, restrição de sabores), empoderando-os a serem fiscais e defensores dessas políticas;
• Conexão com Programas Oficiais: Encaminhar pacientes interessados em parar de fumar para os programas de cessação do tabagismo oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ou outras instituições de saúde, que são políticas públicas;
• Identificação de Produtos Ilegais: Alertar sobre a ilegalidade de cigarros eletrônicos e outros dispositivos no Brasil, combatendo o comércio clandestino e informal.

2. No Nível Comunitário e Educacional:

• Palestras e Campanhas: Participar de ações de saúde em escolas, associações de bairro e empresas, disseminando informações sobre os riscos do tabaco e nicotina, e a importância de políticas públicas, especialmente em campanhas como o Dia Mundial Sem Tabaco;
• Engajamento com Conselhos de Saúde: Atuar em conselhos locais ou estaduais de saúde para influenciar a formulação e fiscalização de políticas antitabagismo.

3. No Nível Profissional e Institucional:

• Advocacia com Entidades de Classe: Trabalhar em conjunto com conselhos regionais e federais de odontologia, associações de especialistas e sindicatos para elaborar pareceres técnicos, promover discussões e fazer lobby junto a legisladores para a criação ou aprimoramento de leis de controle do tabaco;
• Pesquisa e Geração de Evidências: Contribuir com a coleta de dados e pesquisas que demonstrem o impacto do tabaco na saúde bucal e sistêmica, fornecendo subsídios científicos para embasar novas políticas e reforçar as existentes;
• Denúncia Formal: Orientar e, quando aplicável, realizar denúncias formais a órgãos de fiscalização (como a ANVISA, vigilância sanitária, Procon) sobre a venda irregular de produtos de tabaco e nicotina, publicidade abusiva ou descumprimento de leis.

Em suma, a expertise do Cirurgião-Dentista na detecção precoce dos sinais e sintomas, na educação e desmistificação das estratégias enganosas da indústria do tabaco, aliada à sua capacidade de oferecer um acolhimento empático e, quando indicado, a prescrição de farmacoterapia, solidifica sua posição como um ator fundamental na saúde pública. Sua contribuição vai além do consultório, impactando a redução da prevalência do tabagismo, 
diminuindo o ônus econômico das doenças relacionadas ao fumo e promovendo a saúde em um nível populacional. A plena e ativa inclusão dos Cirurgiões-Dentistas nas políticas de controle do tabaco e na colaboração interprofissional é indispensável para o bem-estar dos pacientes e para o sucesso dessas iniciativas. No Dia Mundial Sem Tabaco, este artigo reforça: os Cirurgiões-Dentistas são aliados estartégicos na batalha contínua para desmascarar e 
combater os interesses da indústria que se beneficiam da dependência e do sofrimento, em sinergia com o poder transformador das políticas públicas.

Por Dra Sandra Silva Marques - Cirurgiã-Dentista, executiva em saúde, coordenadora Estadual do Programa Nacional de Controle do Tabagismo e na Coordenação Política Estadual de Controle do Tabaco de São Paulo da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.