Odontologia - 23.11.2025
Câncer infantojuvenil: o papel do Cirurgião-Dentista na identificação precoce e no cuidado durante o tratamento oncológico
Alterações bucais podem ser primeiro sinal de tumores infantis. Atuação odontológica integrada reduz complicações, evita interrupção do tratamento e acompanha sequelas ao longo da vida
O câncer infantojuvenil é, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a principal causa de morte por doença entre crianças e adolescentes de 1 a 19 anos no Brasil. Embora seja considerado raro, sua evolução costuma ser rápida — e muitos dos primeiros sinais podem se manifestar justamente na cavidade bucal. Esse fato coloca o Cirurgião-Dentista em posição estratégica tanto para a suspeita diagnóstica inicial quanto para garantir a continuidade segura do tratamento oncológico.
No Dia Nacional de Combate ao Câncer Infantojuvenil, 23/11, reforça-se a importância desse olhar atento, técnico e especializado — um cuidado que, literalmente, salva vidas.
Manifestações bucais que podem indicar tumores ou doenças hematológicas
Segundo o oncologista pediátrico, diretor científico do Hospital Infantojuvenil do Hospital de Amor (Barretos) e diretor médico associado do Programa St. Jude Global, Dr. Luiz Fernando Lopes muitos quadros oncológicos infantis apresentam alterações bucais ainda no início. Ele explica que a leucemia, por exemplo, pode causar sangramento gengival persistente, crescimento gengival e infecções oportunistas que surgem em decorrência da imunossupressão. "Outras vezes, devido à imunodeficiência causada pela leucemia, as crianças já chegam com contaminação de fungos ou outros agentes infecciosos tanto nas gengivas quanto na cavidade bucal", alerta o especialista.
Nos linfomas, a boca também pode ser o primeiro local de suspeita. Dr. Luiz Fernando explica que muitas vezes o linfoma se inicia nos alvéolos dentários e, quando não percebido a tempo, as crianças podem chegar com imensas massas dentro da cavidade bucal, configurando uma situação de urgência, já que esse crescimento pode causar obstruções de vias aéreas. Ele também menciona tumores que se originam nas amígdalas, formando massas volumosas, e tumores sólidos que podem surgir na língua, tanto na porção externa quanto interna, igualmente com risco de obstrução de vias aéreas.
Outra manifestação relevante são os quadros de histiocitose, que podem provocar retração gengival pronunciada, deixando raízes expostas. Para o especialista, o Cirurgião-Dentista é muitas vezes o primeiro profissional a observar alterações que fogem ao padrão, sendo fundamental reconhecer sinais de alerta e encaminhar rapidamente para avaliação oncológica. Essa capacidade de identificação precoce ganha ainda mais relevância quando se considera que, em muitas regiões do Brasil, o consultório odontológico pode ser o primeiro — e às vezes o único — ponto de contato da criança com um profissional de saúde.
Complicações bucais que interferem diretamente no tratamento
A coordenadora do Serviço de Odontologia Hospitalar do Instituto da Criança e do Adolescente (ICr) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP) e Cirurgiã-Dentista do Serviço de Odontologia do Hospital de Clínicas da Unicamp, Dra. Juliana Bertoldi Franco, detalha que tanto a quimioterapia quanto a radioterapia podem gerar uma série de alterações bucais que comprometem alimentação, fala, higiene e bem-estar geral das crianças e adolescentes.
É importante destacar que a quimioterapia é um tratamento sistêmico, enquanto a radioterapia atua de forma localizada com radiação ionizante. Na Odontologia, as manifestações relacionadas à radioterapia ocorrem quando o campo irradiado envolve a região de cabeça e pescoço. Vale ressaltar que nem todo protocolo quimioterápico gera alterações bucais, mas quando ocorrem, o impacto pode ser severo.
Dra. Juliana ressalta que essas manifestações derivam não apenas da citotoxicidade das terapias, mas também da profunda imunossupressão que acompanha os protocolos oncológicos pediátricos. Entre as alterações mais prevalentes, destacam-se a mucosite oral — frequentemente em graus moderados a severos —, xerostomia, disgeusia (perda do paladar), maior risco de infecções oportunistas (fúngicas, virais e bacterianas), hemorragias decorrentes de trombocitopenia, trismo associado à radioterapia de cabeça e pescoço, lesões ulceradas advindas da neutropenia e aumento significativo de cárie de progressão rápida, gengivite e doença periodontal, em que o Cirurgião-Dentista deve ter conhecimento para realizar o diagnóstico e o tratamento individualizado mais adequado para cada paciente.
Essas complicações repercutem de forma direta na nutrição, hidratação, manutenção da higiene bucal e capacidade funcional da cavidade bucal, podendo desencadear dor intensa, perda ponderal, infecções sistêmicas, necessidade de suporte analgésico e nutricional especializado e aumento do número de hospitalizações. Em casos severos, podem levar à redução de doses ou interrupção da quimioterapia ou radioterapia, impactando negativamente o prognóstico oncológico.
Essa realidade se confirma na rotina dos centros especializados. No Hospital de Amor, o coordenador do Departamento de Odontologia, Dr. Victor Tieghi Neto e a Cirurgiã-Dentista titular em Oncologia Pediátrica, Dra. Thaís Almeida Cruz Azevedo, observam que a abordagem individualizada é crucial justamente porque cada protocolo de tratamento oncológico produz efeitos distintos na cavidade bucal. Os atendimentos consideram a fase do tratamento e o perfil de risco e estomatotoxicidade — termo que designa a toxicidade específica na boca decorrente das terapias antineoplásicas.
"Compreendemos que a saúde bucal interfere diretamente no sucesso do tratamento sistêmico do paciente, pois pacientes que apresentam infecções bucais, sejam de origem odontológica ou oportunistas, possuem maior risco de atraso no protocolo oncológico e necessidade de maior suporte hospitalar", explicam os especialistas.
Dr. Luiz Fernando reforça o impacto dessas complicações na prática clínica: "Uma criança com infecções severas na boca pode não estar apta a iniciar o tratamento imediato com quimioterapia ou corticoide, já que essas infecções elevam morbidade e mortalidade."
Preparação da cavidade bucal: a janela de oportunidade antes do tratamento
A avaliação odontológica anterior ao início do tratamento oncológico é fundamental para evitar interrupções terapêuticas. Dra. Juliana detalha que essa etapa é composta por uma anamnese completa, que inclui o tipo de câncer, protocolo terapêutico previsto, estado hematológico atual e fatores que aumentam o risco de complicações bucais. O exame clínico minucioso identifica lesões de mucosa, focos infecciosos, doença periodontal, cárie, restaurações inadequadas e possíveis traumas relacionados a aparelhos ortodônticos. Exames complementares, como a radiografia panorâmica e tomografia computadorizada de face, em alguns casos, completam a avaliação e orientam o planejamento terapêutico.
Com base nessa avaliação inicial, realiza-se a adequação da cavidade bucal, que envolve remoção de focos infecciosos, e a realização de extrações dentárias quando necessárias, tratamento periodontal, restaurações, profilaxia profissional, aplicação de fluoretos e orientação detalhada de higiene e dietética, entre outras necessidades que o paciente apresente.
No Hospital de Amor, esse fluxo se inicia quando o paciente é admitido. Dr. Victor e Dra. Thaís destacam que muitos pacientes nunca tiveram contato prévio com o Cirurgião-Dentista, o que torna essa primeira abordagem ainda mais delicada. "Precisamos tornar esta primeira impressão a melhor possível, mesmo quando há necessidade de procedimentos invasivos", ressaltam. Além do exame clínico, planejamento e adequação bucal, os profissionais orientam pacientes e familiares sobre os possíveis efeitos adversos do tratamento: mucosite, infecções oportunistas, trismo, hipossalivação, xerostomia, neuropatia, manifestações orais da doença do enxerto contra hospedeiro (DECH) — complicação que pode ocorrer após transplante de medula óssea — e alterações de desenvolvimento.
A Profa. Juliana destaca as medidas preventivas mais eficazes para reduzir infecções e mucosite: higiene bucal intensiva e monitorada, aplicação de protocolos preventivos e curativos com laser de baixa intensidade, manejo da xerostomia com o uso de lubrificantes bucais, corticoide em bochecho, crioterapia em protocolos específicos, além de educação e orientação contínuas de pacientes e responsáveis.
As orientações dietéticas também desempenham papel relevante. O consumo de dieta pastosa, morna ou fria, não condimentada, não ácida e não gaseificada contribui para a preservação da integridade da mucosa bucal. Segundo a Profa. Juliana, essas ações são decisivas porque a mucosite oral grave e as infecções bucais são uma das principais causas de interrupção do tratamento antineoplásico. A atuação odontológica antes do início do tratamento reduz a severidade das alterações bucais, diminui morbidade, reduz hospitalizações, diminui custos relacionados ao tratamento e aumenta a segurança e a adesão ao protocolo oncológico, restabelecendo qualidade de vida.
Atuação integrada com impacto no prognóstico e na qualidade de vida
Nos hospitais de alta complexidade, a atuação da Odontologia é totalmente integrada às equipes de oncologia pediátrica. A Dra. Juliana explica que, no Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da USP, a qualidade do cuidado ao paciente pediátrico oncológico depende de protocolos integrados que assegurem segurança clínica, conforto e manutenção da qualidade de vida ao longo de todo o tratamento.
Entre as estratégias de maior eficácia, destaca-se a avaliação multiprofissional inicial, envolvendo oncologia pediátrica, odontologia hospitalar, enfermagem, nutrição, psicologia, fisioterapia e serviço social. Essa abordagem permite estratificar risco clínico, prever efeitos adversos esperados de cada protocolo quimioterápico ou radioterápico e individualizar o plano terapêutico.
No Hospital de Amor, essa integração se materializa também na busca ativa beira-leito. Dr. Victor e Dra. Thaís explicam que a equipe atua diariamente em todos os setores do hospital com individualização dos atendimentos, visando reduzir comorbidades. O rigoroso controle de biofilme e o monitoramento contínuo incluem ações preventivas e terapêuticas com fotobiomodulação, além de manejo específico para xerostomia severa com hidratantes orais adequados.
A integração com a equipe médica garante que decisões sobre extrações, antibioticoterapia e manejo da dor sejam tomadas de forma coordenada e segura, respeitando janelas hematológicas críticas — ou seja, os momentos em que os parâmetros sanguíneos permitem a realização de procedimentos com menor risco — e definindo o momento oportuno para cada intervenção odontológica. A implementação de protocolos de avaliação odontológica prévia ao tratamento oncológico, adequação da cavidade bucal e laserterapia profilática tem impacto direto na redução de mucosite oral, infecções oportunistas e interrupções terapêuticas.
Dr. Luiz Fernando reforça a importância desse acompanhamento longitudinal: "É fundamental ter um Cirurgião-Dentista pediátrico oncológico na equipe. Ele será o profissional que deve preparar as condições bucais para que a criança possa receber o tratamento, seja auxiliando no diagnóstico quanto no cuidado. O Cirurgião-Dentista também deverá acompanhar todo o tratamento da criança, cuidando das mucosites e infecções secundárias que podem surgir durante o tratamento."
Sequelas de longo prazo e o acompanhamento além da cura
O cuidado odontológico ao paciente oncológico pediátrico não se encerra com a conclusão do tratamento. O Dr. Victor Tieghi Neto e a Dra. Thaís Almeida Cruz Azevedo explicam que os protocolos oncológicos podem causar diferentes efeitos adversos de longo prazo, dependentes do local do tumor, da modalidade de tratamento e, especialmente, da idade de exposição à terapia.
Crianças que fazem quimioterapia, transplante de medula óssea ou radioterapia na região de cabeça e pescoço na primeira infância podem apresentar alterações significativas no desenvolvimento dentário. Entre as principais sequelas observadas estão agenesia dentária, anomalias dentárias de desenvolvimento, como hipomineralizações, microdontias, atraso eruptivo, alterações estruturais de esmalte e má oclusão.
Os pacientes que recebem radioterapia na região de cabeça e pescoço na infância apresentam, com frequência, sequelas adicionais como assimetrias faciais, micrognatia e trismo. "A equipe da odontologia acompanha estes pacientes ao longo da vida com objetivo de reabilitar e tratar sequelas, proporcionando funcionalidade, estética e qualidade de vida", ressaltam os especialistas do Hospital de Amor.
Esse acompanhamento longitudinal é essencial para identificar precocemente alterações no desenvolvimento dentofacial e implementar intervenções reabilitadoras que minimizem o impacto dessas sequelas na vida adulta dos sobreviventes de câncer infantojuvenil. Do consultório à UTI pediátrica, do diagnóstico precoce ao acompanhamento de décadas, o Cirurgião-Dentista consolidou-se como figura indispensável no cuidado oncológico infantojuvenil — não mais como coadjuvante, mas como profissional cuja atuação pode determinar o sucesso terapêutico e a qualidade de vida futura dos pacientes.
Por Swellyn França