Odontologia - Canabinoides na Odontologia: o potencial terapêutico além da dor

Odontologia - 03.05.2024

Canabinoides na Odontologia: o potencial terapêutico além da dor

Há muitas evidências sobre o papel dessa substância.
Há muitas evidências sobre o papel dessa substância.

O Brasil é líder mundial em publicações científicas sobre endocanabinologia, o estudo do sistema endocanabinoide (SEC) e sua regulação através da administração de canabinoides para propósitos terapêuticos. Canabinoide é um termo amplo que engloba substâncias produzidas fisologicamente, sintéticas, como também as encontradas na Cannabis sativa, uma planta da família Cannabaceae e que modulam o SEC. Mais de cem fitocanabinoides já foram identificados, produzidos pelas estruturas glandulares conhecidas como tricomas, presentes na superfície da flor.

Há muitas evidências sobre o papel dessas substâncias no tratamento da dor crônica e principalmente quando estas alterações sofrem impactos psicossomáticos, contribuindo para a cronificação das dores. Na medicina, a cannabis tem-se mostrado eficaz no tratamento de dores oncológicas, neuropáticas e outras condições debilitantes, tais como as epilepsias refratárias que não respondem à tratamentos convencionais. Trata-se de uma alternativa segura e eficaz aos opioides, pois não causa dependência e outros efeitos colaterais graves.

A Odontologia também tem explorado seu potencial no controle da dor, inflamação e ansiedade, sintomas comuns em várias condições clínicas odontológicas. As principais aplicações incluem o tratamento de disfunções temporomandibulares (DTM), bruxismo e outras dores que afetam a região orofacial.

“As pesquisas também estão avançando em outras áreas, considerando o potencial dos canabinoides na aceleração da cicatrização e seu efeito anti-inflamatório, por exemplo, na periodontia. Já existem alguns estudos que demonstram esses benefícios, principalmente sobre dor orofacial, condições periodontais e lesões bucais que necessitam de cicatrização”, explica o Dr. João Paulo Tanganeli, especialista em DTM/Dor Orofacial e em Ortopedia Funcional dos Maxilares, com pós-doc em Biofotônica (currículo completo).

De fato, os fitocanabinoides demonstram ser potentes anti-inflamatórios e antioxidantes, com potencial de uso na indução do processo de reparo ósseo na Periodontia, Implantodontia, Cirurgia Bucomaxilofacial, Endodontia e Ortodontia, segundo informa a doutora em Implantodontia Alethéia Buosi Pablos (currículo completo), diretora do Núcleo de Odontologia da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC) e Diretora da Sociedade Brasileira de Odontologia Canabinoide (SBOCAN), a primeira do mundo a reunir Cirurgiões-Dentistas no estudo da endocanabinologia.

“A aplicação tópica de canabinoides é especialmente relevante na Odontologia, pois eles podem ser utilizados para dores musculares, articulares, mas principalmente, como moduladores do reparo de feridas, sendo bem absorvidos e apresentando efeitos bactericidas, antifúngicos, anti-inflamatórios e antioxidantes”, diz.

Essa abordagem visa não apenas cicatrizar, mas também promover o reparo tecidual, restaurando a morfologia e a função do tecido afetado. “É uma área promissora que precisa de mais investigação para desenvolvimento de produtos que possam ser usados de forma prolongada para induzir a modulação da inflamação e facilitar o reparo tecidual na Odontologia”, acrescenta a Dra. Alethéia. Outra perspectiva promissora é a utilização de fitocanabinoides para controlar a ansiedade pré-atendimento.

Sobre as indicações terapêuticas, é fundamental a determinação da dosagem personalizada para cada paciente, pois uma das características dessa terapia é a individualização das doses, lembra o Dr. Tanganeli. Ao contrário de medicamentos como a dipirona, em que uma dose padrão pode ser prescrita para todos, na terapia com canabinoides a dosagem varia de acordo com cada paciente. Algumas pessoas obtêm alívio com doses muito baixas, enquanto outras precisam de doses mais elevadas. Além disso, o tempo para que o efeito seja sentido também varia, podendo ocorrer imediatamente nos primeiros dias ou levar até uma ou duas semanas.

Não há limitações legais ou regulatórias específicas que impeçam o uso da cannabis em procedimentos odontológicos. “O mais importante é que os profissionais respeitem seu uso para indicações relacionadas à prática clínica odontológica. Somente médicos e Cirurgiões-Dentistas têm permissão para ministrar, prescrever ou administrar medicamentos, incluindo os canabinoides”, salienta o Dr. Tanganeli.

Uso em idosos

Os idosos são os que mais poderão se beneficiar do uso de canabinoides, tanto na Odontologia quanto no tratamento médico em geral, pois é o grupo mais recorrente quando se fala em dores crônicas. Com frequente necessidade de múltiplos medicamentos concomitantes, são chamados de pacientes polifarmácia ou polimedicados. “Após a pandemia, observamos um aumento significativo nas queixas de dores crônicas, frequentemente acompanhadas por distúrbios do sono e ansiedade”, conta a Dra. Alethéia.

Uma deficiência fisiológica, comum no envelhecimento, torna mais difícil para esses indivíduos alcançarem a homeostase, que é o estado de equilíbrio. O sistema endocanabinoide não é exceção; os pacientes idosos frequentemente experimentam desequilíbrios profundos na modulação desse sistema, podendo se beneficiar do tratamento com canabinoides, explica a Dra. Aletheia.

Segundo ela, é importante ressaltar aos pacientes e aos novos colegas que chegam a essa ciência que a terapêutica canabinoide não resolve todos os problemas, mas que existe a perspectiva para assumir um papel relevante no restabelecimento da saúde e na melhora da qualidade de vida das pessoas de maneira geral.

Há ainda receio sobre os efeitos indesejados, por isso, em seu trabalho de pós-doutorado pela FMABC, a Dra. Aletheia busca mostrar os benefícios colaterais dos canabinoides, que vão além dos resultados primários do tratamento, como a redução da dor ou da odontofobia pré-atendimento. “Observamos uma modulação significativa da inflamação sistêmica, melhorias cognitivas, do sono e redução da ansiedade, além de uma melhora na percepção geral da qualidade de vida. Muitos pacientes retomam suas atividades laborais devido à significativa melhora da dor”, conta.

Para aqueles que sofrem de dores crônicas, o exercício físico torna-se fundamental para estimular a modulação do sistema nervoso central, via ativação do SEC. Uma vez modulados através da terapia com canabinoides, esses pacientes frequentemente retomam a prática de esportes devido à melhora significativa da dor, além de recuperarem suas relações familiares e desfrutarem de convívio social com amigos, melhora na alimentação, já que tudo isso faz parte integral do tratamento. Observação clínica relevante, é a de que alguns pacientes conseguem, reduzir ou até mesmo eliminar o uso de medicamentos alguns medicamentos alopáticos.

Quanto às contraindicações, a discussão em torno desse tema é extensa, pois não se trata de contraindicações, mas sim de cuidados ou indicações específicas. Nos pacientes idosos, é preciso estar atento aos medicamentos já em uso. “É importante antecipar e gerenciar possíveis interações medicamentosas, além de monitorar a evolução do paciente, realizando exames laboratoriais antes do início da terapia e trimestralmente durante o tratamento, especialmente durante o primeiro ano. Essa abordagem proporciona uma base sólida de informações sobre o histórico de saúde deste paciente, para ajustar e modular a dose e o manejo terapêutico. Muitos pacientes alcançam sucesso com microdoses sistêmicas de fitocanabinoides”, acrescenta a Dra. Aletheia.

Ela também chama atenção para o aumento significativo de pacientes que se queixam da síndrome da ardência bucal. Durante a pandemia, além do aumento da incidência das fraturas dentais, comuns no fim de 2020 e 2021, foram observados uma elevação significativa dos diagnósticos do bruxismo em vigília, em todas as faixas etárias, inclusive entre os idosos. Além disso, o aparecimento e a recorrência da síndrome da ardência bucal são particularmente sensíveis nesse grupo.

Essa síndrome é caracterizada por uma dor nociplástica, ou seja, “sem explicação”, sem lesão ou inflamação aparente ou prévia nos tecidos, o que torna o tratamento desafiador, pois muitas vezes é refratária aos tratamentos convencionais disponíveis. Os pacientes que sofrem dessa síndrome relatam uma sensação desconfortável de ardência persistente, o que pode limitar suas atividades diárias, como comer, falar e se comunicar e consequentemente interagir. A síndrome da ardência bucal é mais comum em mulheres: quatro são afetadas para cada homem, assim como as dores crônicas são mais prevalentes nelas, especialmente durante a menopausa. No Brasil, essas condições são mais comuns nas regiões Sul e Sudeste.

Dra. Alethéia salienta que o ajuste da dose individualizado, é o grande pilar para o sucesso do tratamento, exigindo contatos frequentes, com esses pacientes para as adequações necessárias. Os pacientes e seus familiares, frequentemente relatam pequenas vitórias no dia a dia, como sair para almoçar com a família, prática de atividade física e de lazer que antes eram impossíveis devido à dor e ao desconforto associados às dores crônicas, tais como a da síndrome da ardência bucal.

“Ao obtermos sucesso no tratamento com canabinoides, não estamos apenas tratando o paciente em si. É comum que toda a família, que muitas vezes sofre junto com um ente querido, que convive diariamente com dor crônica, experimente melhorias. Indiretamente, todo esse núcleo familiar também é beneficiado”, salienta a Dra. Alethéia.

Uso em crianças e adolescentes

O uso de canabinoides desempenha um papel significativo no condicionamento de crianças e adolescentes neuroatípicos, dentre eles, uma grande parcela, 70% destes pacientes, autistas, de acordo com a Dra. Monique Xavier, especialista em Ortodontia, professora e pós-graduanda em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais (OPNE), além de mestranda na ISNF/UFF (currículo completo).

Muitos desses pacientes apresentam reatividade, evitam o toque, têm dificuldade em fazer contato visual, exibem estereotipias e têm hábitos psicossomáticos exacerbados. Os consultórios odontológicos representam ambientes com muitos estímulos sensoriais intensos para eles, como a predominância do branco, barulho, luzes e cheiros desconhecidos. Esses estímulos ambientais são processados de forma amplificada nos pacientes neuroatípicos.

“A associação dos canabinoides possibilita o condicionamento dessas pessoas ao ambiente, com o menor estresse possível, permitindo seu retorno periódico para tratamento, orientação e assistência na escovação e condicionamento odontológico”, explica a Dra. Monique.

Embora seja necessária cautela com o uso do THC, especialmente em pacientes polifarmácia, não há restrição ou contraindicação para pacientes neuroatípicos. Isso se deve ao entendimento atual, bem fundamentado, do importante papel anti-inflamatório, antioxidante, neuroprotetor e neurogênico do THC na modulação do Sistema Endocanabinoide (SEC) no Sistema Nervoso Central (SNC), desses pacientes, sabidamente desregulado. Porém, não há a mesma indicação para crianças neurotípicas, que na maioria dos casos não necessitam do medicamento para condicionamento.

Entraves

Há diversos obstáculos para o desenvolvimento e a ampliação do uso de medicamentos à base de canabinoides no Brasil. A burocracia e o alto custo são fatores que ainda impedem que essa terapia beneficie um número maior de pacientes.

A RDC 327, que amplia os usos e a prescrição de produtos derivados da planta, disponibilizando produtos para acesso direto em farmácias, não contempla produtos tópicos ou de nanotecnologia à base de canabinoides, limitando a variedade de produtos que possam ser prescritos, apesar da indicação na prática odontológica. A maioria dos produtos disponíveis em farmácias não inclui formulações tópicas, como cremes dentais ou enxaguatórios bucais à base de canabinoides.

Quanto ao acesso dos pacientes, a importação via RDC 660/2022 – quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) inclui e regulamenta oficialmente a Odontologia no hall de prescritores -,  ainda é a forma mais comum e acessível, embora tenha como desvantagem a impossibilidade de início imediato do tratamento, já que este processo demora em torno de 10 dias para que o paciente receba em casa seus produtos.

A judicialização é uma alternativa para pacientes que necessitam de tratamento com canabinoides, permitindo que o Sistema Único de Saúde (SUS) ou operadoras de convênios cubram os custos desses tratamentos.

“É evidente a necessidade de avançar na facilitação do acesso aos produtos à base de canabinoides, pois há um enorme potencial de benefício terapêutico para a população. Isso requer avanços significativos em termos de pesquisas clínicas e uma mudança de perspectiva sobre o uso terapêutico dentro das comunidades médicas e odontológicas”, afirma a Dra. Alethéia.

Importante reconhecer que a mesma planta que fornece fitocanabinoides para uso medicinal, não é utilizada apenas para esse fim. “Portanto, é essencial mudar a maneira como encaramos essa alternativa terapêutica e promover um entendimento mais abrangente sobre endocanabinologia clínica. Isso envolve incluir o ensino sobre o sistema endocanabinoide nas grades curriculares das faculdades de Medicina, de Odontologia e demais áreas biológicas e da saúde, visto que é um sistema fisiológico tão importante quanto outros sistemas do corpo humano”, acrescenta.

Perspectivas

Para a Dra. Alethéia, é empolgante considerar as perspectivas que os canabinoides podem oferecer na Odontologia, pois elas vão muito além do tratamento da dor em pacientes refratários. “Costumo comparar o entendimento do sistema endocanabinoide e a terapia com canabinoides a uma chuva mansa e constante que já está caindo. Cabe ao cirurgião-dentista compreender e aprofundar seus conhecimentos sobre o assunto, trazendo uma terapia diferenciada para melhorar o cuidado com seus pacientes”, expõe.

Em relação a essa terapia, há duas posturas que ela sugere adotar: “Podemos nos esconder e fingir que nada está acontecendo, seguir privando os pacientes dos benefícios promissores dessa terapêutica, ou podemos decidir ‘dançar na chuva’, entendendo e aprofundando o nosso conhecimento da endocanabinologia e, principalmente, compartilhando ciência de qualidade com outros colegas, destacando as perspectivas e potenciais formas de utilização dos canabinoides na Odontologia”. Fica a reflexão.

Por Swellyn França