Odontologia - 11.09.2025
Antipsicóticos e Saúde Bucal: um cuidado que exige atenção especial do Cirurgião-Dentista
Medicamentos indispensáveis no tratamento de transtornos psiquiátricos podem desencadear importantes repercussões na cavidade oral; especialistas destacam os desafios e o papel do Cirurgião-Dentista na prevenção, manejo e acolhimento humanizado

Os antipsicóticos são medicamentos fundamentais no tratamento de transtornos psiquiátricos como esquizofrenia, transtorno bipolar e transtornos psicóticos agudos. Estima-se que milhões de brasileiros façam uso desses fármacos, que permitem maior estabilidade emocional e funcionalidade social, mas que também apresentam efeitos adversos importantes. Entre eles, estão manifestações que repercutem diretamente na cavidade oral e podem comprometer a qualidade de vida dos pacientes.
Nesse cenário, o Cirurgião-Dentista desempenha papel decisivo: precisa compreender os mecanismos farmacológicos envolvidos, reconhecer as manifestações clínicas associadas e desenvolver estratégias de prevenção e tratamento, sempre com uma abordagem humanizada. Como reforça o psiquiatra Dr. Leonardo Baldaçara — coordenador da Comissão de Emergências Psiquiátricas e Diretor Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), presidente do Núcleo de Psiquiatria do Tocantins e membro do Comitê Executivo da Seção de Psiquiatria Preventiva e Promoção da Saúde Mental da Organização Mundial de Psiquiatria — “a baixa adesão ao tratamento não é incomum, já que pacientes com transtorno psicótico apresentam dificuldades relacionadas a sintomas negativos, efeitos colaterais dos fármacos, estigma social e acesso insuficiente para tratamento”. Além de quadros como esquizofrenia, transtorno bipolar e transtornos psicóticos agudos, em alguns casos graves também há prescrição com cautela para demência com sintomas psicóticos.
Alterações orais e mecanismos farmacológicos
O impacto dos antipsicóticos sobre a cavidade oral é direto e significativo. O professor associado de Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica da Faculdade de Odontologia de Piracicaba – Universidade Estadual de Campinas (FOP-Unicamp), Prof. Dr. Bruno Bueno Silva, detalha: “Medicamentos como haloperidol, clorpromazina, risperidona, quetiapina e clozapina reduzem a atividade das glândulas salivares por bloquearem receptores muscarínicos do sistema parassimpático. O resultado é hipossalivação e xerostomia, frequentemente relatada pelos pacientes. Além disso, a sedação e a redução do consumo de água contribuem para a desidratação da mucosa oral”.
Segundo ele, essas alterações não dizem respeito apenas ao volume de saliva, mas também à sua composição: “O pH salivar tende a cair, a concentração de íons cálcio e bicarbonato diminui e a atividade antimicrobiana natural, desempenhada por proteínas como lactoferrina e lisozima, fica comprometida. Essas mudanças comprometem a proteção natural da saliva e favorecem uma disbiose do biofilme oral”. Nessas condições, bactérias cariogênicas como Streptococcus mutans e fungos como Candida spp. encontram ambiente propício para proliferar, aumentando o risco de lesões de cárie, doença periodontal e candidíase.
O Dr. Bruno também destaca os fatores comportamentais associados ao uso dos antipsicóticos: “Ganho de peso e compulsão alimentar — sobretudo por doces, no caso da clozapina e olanzapina — elevam a frequência de exposição a carboidratos fermentáveis. Além disso, a ausência ou insuficiência de higiene oral é comum em pacientes com transtornos psicóticos”. O resultado é um quadro multifatorial que potencializa os riscos para a saúde bucal.
Manifestações clínicas e desafios comportamentais
Na prática clínica, os efeitos orais são variados. A Cirurgiã-Dentista no Governo do Estado de São Paulo e no Instituto Perdizes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, Dra. Bruna Luiza Roim Varotto, que é especialista em Odontologia Hospitalar e em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais, observa: “No uso de antipsicóticos é possível verificar tanto hipossalivação, levando à xerostomia, quanto hiperssalivação, identificada clinicamente pelo extravasamento de saliva (‘babação’). Alterações motoras, como a discinesia oromandibular tardia, também são preocupantes e podem intensificar dores miofasciais”.
Ela lembra ainda que esses medicamentos não se restringem à esquizofrenia: “Também podem ser prescritos para transtorno bipolar, transtorno do espectro autista e TDAH. Assim, os desafios de comportamento são bastante variáveis, incluindo alterações de humor e prejuízo no autocuidado”. Nesses casos, a anamnese detalhada e a criação de vínculo de confiança são essenciais.
O Dr. Leonardo também reforça que os principais pontos de atenção para o Cirurgião-Dentista incluem xerostomia, sialorreia, movimentos involuntários orofaciais, agranulocitose, alterações metabólicas e ósseas e efeitos sedativos. “Esses fatores aumentam o risco de cárie, doença periodontal, infecções orais e complicações em tratamentos odontológicos”, aponta.
Estratégias preventivas e terapêuticas
Diante desse quadro, os especialistas são unânimes: a prevenção é a melhor estratégia. A Dra Bruna Varotto recomenda medidas práticas para o dia a dia: ingestão frequente de água em pequenas quantidades, uso de saliva artificial ou hidratantes intraorais, higiene criteriosa de próteses removíveis, uso de cremes dentais fluoretados, limitação do consumo de açúcares, álcool e tabaco, além de consultas de retorno mais frequentes. “Assim, é possível realizar acompanhamento próximo e instituir medidas preventivas como profilaxia, raspagem e aplicação de verniz fluoretado”, acrescenta.
O Dr. Bruno Silva, por sua vez, amplia as possibilidades terapêuticas com base em evidências: saliva artificial em diferentes formas, sialogogos como pilocarpina e cevimelina, probióticos específicos (Lactobacillus spp., Bifidobacterium spp.), enxaguatórios contendo flúor ou clorexidina quando indicados, antifúngicos tópicos e terapia fotodinâmica para candidíase, além de laserterapia de baixa intensidade para estimular glândulas salivares, reduzir inflamação e promover cicatrização da mucosa oral. “O manejo deve ser sempre acompanhado de reforço de hábitos de higiene oral rigorosos, com escovação adequada e uso de fio dental, controle da ingestão de alimentos açucarados e integração com as demais terapias prescritas”, resume.
Além de monitorar a saúde periodontal e orientar higiene intensiva, o Dr. Leonardo considera que o Cirurgião-Dentista, quando necessário, também deve avaliar exames laboratoriais em articulação com o psiquiatra.
Saúde bucal, saúde mental e acolhimento
As repercussões da saúde bucal comprometida vão além do desconforto físico. “Existe evidência de que a severidade da doença periodontal pode estar associada à maior gravidade de sintomas depressivos e psiquiátricos. Ao mesmo tempo, a doença oral pode contribuir, por vias inflamatórias e imunológicas, para agravar o quadro psiquiátrico”, explica o Dr. Bruno. Ainda que faltem grandes ensaios clínicos, há plausibilidade biológica para que intervenções odontológicas que reduzam inflamação sistêmica impactem positivamente o tratamento psiquiátrico.
O impacto sobre a qualidade de vida é evidente. “Tratar lesões de cárie, gengivites e periodontite evita dor crônica que pode intensificar sintomas depressivos. A reabilitação estética e funcional, o controle da sialorreia e o tratamento da xerostomia impactam na autoestima e favorecem a inclusão social”, confirma o psiquiatra, Dr. Leonardo.
Nesse contexto, o acolhimento humanizado do Cirurgião-Dentista ganha relevância. “Permitir pausas durante o atendimento, combinar um sinal de parada, incentivar a presença de um acompanhante, de um cão de suporte emocional ou mesmo de um objeto de suporte que traga segurança ao paciente são estratégias que podem ajudar”, orienta a Dra Bruna. “O uso de linguagem simples e clara, repetição de informações importantes e validação das conquistas do paciente reforçam a confiança. Esses elementos fazem parte de um cuidado centrado na compaixão, que tem mostrado resultados favoráveis na adesão ao autocuidado.”
A especialista acrescenta que o ambiente físico também pode ser adaptado para reduzir estímulos sonoros e visuais ou, em alguns casos, que o atendimento domiciliar pode ser preferível. “Iniciativas de aproximação do Cirurgião-Dentista às equipes de saúde favorecem um cuidado mais abrangente e humanizado, especialmente na atenção primária, onde há maior vulnerabilidade dos pacientes.”
Como sintetiza o Dr. Leonardo, o consultório odontológico pode ser mais do que um espaço de tratamento técnico: “Pode se tornar um espaço de escuta ativa, combatendo o estigma e fortalecendo redes de apoio. Restaurar o sorriso e prevenir complicações orais reforça sentimentos de pertencimento e valorização da vida”. Em sintonia com o espírito do Setembro Amarelo — entendido aqui como promoção de dignidade, pertencimento e redes de apoio para qualquer pessoa em sofrimento psíquico — o consultório odontológico pode ser também um espaço de escuta e acolhimento, sem estigmas.
Por Swellyn França
Setembro Amarelo 2025: dignidade e pertencimento também passam pelo sorriso
“O cuidado odontológico pode auxiliar através da promoção da dignidade — restaurar o sorriso e prevenir complicações orais reforçam sentimentos de pertencimento e valorização da vida.” — Dr. Leonardo Baldaçara, coordenador da Comissão de Emergências Psiquiátricas da ABP
Você Sabia?
- Em 10 de setembro é celebrado o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, data que inspira o movimento Setembro Amarelo, lançado no Brasil em 2015 por CVV, ABP e CFM.
- Em 2025, a campanha foi oficializada pela Lei 15.199, que também estabeleceu o Dia Nacional de Prevenção da Automutilação (17 de setembro).
- Segundo a OMS, o Brasil registra em média 38 suicídios por dia, cerca de 14 mil por ano.