Palavra do Especialista - 08.09.2025
Antes de sermos Dentistas, precisamos ser “gentistas”

Há muitos anos, escrevi um artigo para uma revista no qual defendi uma ideia simples, mas essencial: antes de sermos Cirurgiões-Dentistas, precisamos ser gentistas. Essa convicção, amadurecida ao longo de décadas de prática clínica, especialmente no cuidado com crianças e pacientes com necessidades especiais, permanece ainda mais viva em mim hoje.
Ao longo da minha carreira, percebi que dominar técnicas, equipamentos modernos e materiais de última geração é apenas uma parte — importante, mas parcial — daquilo que significa ser um bom profissional da saúde. A verdadeira diferença acontece no encontro humano: no modo como olhamos para o paciente, como escutamos suas queixas e como reconhecemos suas fragilidades. É aí que mora a essência do ser gentista. Infelizmente, o que observo é que nossas universidades e escolas de Odontologia continuam a formar, predominantemente, técnicos.
Não há dúvida de que o domínio da técnica e da estética é fundamental. Porém, cada vez mais, esse aspecto ocupa o centro da formação acadêmica, enquanto a essência do cuidado — o olhar atento ao paciente como indivíduo único — permanece em segundo plano. Falamos de protocolos, planejamentos digitais, reabilitações estéticas impecáveis, mas pouco discutimos sobre ansiedade, medo, limitações sociais, barreiras culturais e tantas outras questões humanas que atravessam o atendimento odontológico. No entanto, cada ser humano que ocupa uma cadeira odontológica traz consigo necessidades especiais. Para alguns, elas se manifestam em condições médicas complexas, como cardiopatias, síndromes genéticas ou deficiências neurológicas. Para outros, surgem em aspectos psicológicos, emocionais ou comportamentais — a criança que chora, o adulto que carrega traumas de experiências passadas, o idoso que teme perder sua autonomia. Mas, ainda que não recebam formalmente o título de “pacientes especiais”, todos nós carregamos vulnerabilidades, singularidades e exigências próprias.
Reconhecer, respeitar e considerar essas particularidades é o que transforma um Cirurgião-Dentista em um gentista. Ser gentista é compreender que, antes de manipular instrumentos, é preciso acolher pessoas. É enxergar o paciente não apenas como portador de uma cavidade oral, mas como um ser humano integral, que demanda cuidado, empatia e dignidade. É assumir, de fato, a posição de doutores da saúde oral, médicos da saúde que acontece pela boca, mas que repercute em todo o corpo e em toda a vida. Afinal, a Odontologia não é apenas estética ou função mastigatória; é autoestima, bem-estar e qualidade de vida. Tenho visto, com alegria, pequenas mudanças surgindo em alguns programas acadêmicos que começam a incluir disciplinas de humanização, comunicação em saúde e atenção a populações vulneráveis. Mas ainda estamos longe do que seria ideal. O futuro da Odontologia — e da saúde — precisa passar por esse caminho. Que um dia possamos ver, nas universidades do Brasil e do mundo, currículos que não apenas formem Cirurgiões-Dentistas, mas que inspirem a formação de gentistas. Isso significa treinar profissionais para serem competentes, mas também sensíveis; para dominarem técnicas, mas também desenvolverem escuta; para realizarem procedimentos complexos, mas também oferecerem palavras de conforto. Significa ensinar que sorrir para um paciente pode ser tão terapêutico quanto restaurar um dente. Imagino um futuro em que, ao celebrarmos as graduações de novos profissionais, possamos dizer com orgulho que estamos entregando à sociedade doutores da saúde oral, preparados técnica e humanamente para cuidar de pessoas em toda a sua diversidade. Profissionais que, mais do que Cirurgiões-Dentistas, são verdadeiros gentistas. Essa é a Odontologia que acredito e pela qual sigo lutando: uma Odontologia centrada no ser humano, na empatia e no respeito. Porque, no final das contas, antes de sermos Cirurgiões-Dentistas, precisamos ser, acima de tudo, gente cuidando de gente.
Por Profa. Dra. Leda Mugayar - Cirurgiã-Dentista especialista em Odontopediatria e em Odontologia para Pacientes com Necessidades Especiais. Professora associada clínica e diretora da Clínica de Cuidados Inclusivos da Faculdade de Odontologia da Universidade de Illinois em Chicago (UIC)